Sobre Vida e Evolução

 

O óvulo, após ser fecundado, divide-se milhões de vezes, criando formas, gerando órgãos, músculos, nervos, e após nove meses deixa o corpo materno para dar início a mais uma vida.

A minúscula semente jogada na terra germina, cria raízes, cresce, rompe o solo, avoluma-se, e após alguns anos transforma-se em árvore frondosa que irá fornecer frutos e abrigo.

O corpo celeste vaga pelo espaço, choca-se com outros corpos, explode, funde-se, vira uma mistura de gases e chamas, é atraído por uma estrela, entra em órbita, resfria, e após bilhões de anos vê surgir oceanos e planícies que um dia poderão abrigar uma nova forma de vida.

Tudo no universo, desde as imperceptíveis minúcias até as gigantescas realizações, tem seu próprio tempo e ritmo, tal como os instrumentos de uma perfeita sinfonia. Nada é supérfluo, nada é excessivo e tudo tem finalidade definida. E a força criadora desta sinfonia universal muitos chamamos de Deus.

Nós, que na escala evolutiva ainda somos crianças aprendendo a engatinhar, nos assemelhamos ao cego-surdo deixado frente a um extraordinário concerto sinfônico. Nos faltam sentidos para apreciar em sua plenitude a beleza e perfeição desta sinfonia. Mesmo assim, de alguma forma podemos intuir que estamos frente a algo extraordinário. E como na sinfonia, onde cada instrumento tem sua função definida e onde cada nota tem o momento exato para ser executada, sentimos que também no universo somos parte de algo grandioso, onde tudo tem razão para existir e onde cada coisa, por menor que seja, tem o momento certo de entrar em cena, o seu início. 

Aceitando essa hipótese, é inevitável pensarmos quando teria sido nosso início. Não me refiro ao bebê que é expelido do útero materno, mas sim ao princípio inteligente que habita cada um de nós, que nos personaliza, identifica e acompanha ao longo dessa existência. Aquilo que muitos chamamos de alma ou espírito, e que dá vida ao corpo.

A alma nasce junto com o corpo? É confortável dizer que sim, e não pensar mais sobre o assunto. Mas quem se dispuser a considerar essa questão mais a fundo, de forma isenta de preceitos ou dogmas religiosos, irá constatar que essa hipótese traz várias inconsistências. E que todas desafiam a razão.

Se a alma nasce junto com o corpo, se é criada naquele exato instante e em igualdade de condições com todas as outras almas, como explicar que filhos do mesmo pai e mãe, criados sob as mesmas condições, submetidos às mesmas influências, que moram na mesma casa, tem os mesmos amigos, frequentam a mesma escola, recebem a mesma educação, ensinamentos, alimentos e influências tenham personalidades e características tão diferentes? Como explicar que alguns nasçam inteligentíssimos enquanto outros tem sérias deficiências cerebrais? Como explicar que alguns revelem desde cedo saúde e vigor incomuns, enquanto outros nasçam com angustiantes debilidades físicas? Como explicar que alguns nasçam belíssimos, atraindo elogios e o desejo de tantos, enquanto outros nasçam com deformidades terríveis que chegam a repugnar a visão? Como explicar as simpatias e amizades instantâneas, com pessoas que acabamos de conhecer? Como explicar os estranhamentos e sensações de desconforto quando nos aproximamos de pessoas que nunca vimos? Como explicar que tantos nasçam e vivam em berços de ouro, com todos os confortos e comodidades que o dinheiro pode proporcionar, enquanto outros nasçam e vivam na miséria absoluta, sem acesso sequer aos alimentos que lhes garantam subsistência? Como explicar os gênios da música, que aos 3 anos e sem estudo prévio, executam de ouvido sinfonias completas? Como explicar os gênios da matemática, artes, ciências e de tantos outros campos que desde cedo revelam habilidades extraordinárias, e que ao longo de suas vidas deixam obras e legados admiráveis, revolucionando o conhecimento e a ciência? E como explicar os que nascem mentecaptos ou imbecis, que passam a vida toda sem capacidade de quase nada produzir ou até mesmo compreender? Como explicar tantos aparentes absurdos dentro da perfeição que rege cada mínimo detalhe do universo? E como aceitar tantas  aparentes injustiças dentro da infalível perfeição de Deus, que sempre concede a todos seus filhos ao nascer as mesmas oportunidades?

A conclusão é evidente: Não começamos aqui. Nossas almas nasceram muito antes de nossos corpos e ao nascermos e vestirmos estes 'invólucros corpóreos', que irão nos servir durante algumas décadas, trazemos também toda nossa bagagem acumulada ao longo dos lugares por onde já passamos. Trazemos conosco tudo que aprendemos e fizemos, nossos erros e acertos, nossos bônus e nossos ônus, nossas simpatias e antipatias, nossas propensões e aversões, nossos débitos e créditos. E tudo isso irá se refletir na forma como aqui nos apresentamos. 

Acredito que antes mesmo de tomarmos consciência de nossa individualidade própria, de reconhecermos a nós mesmos, de desenvolvermos os dons da inteligência, razão, livre-arbítrio e outras características que tornam a cada um de nós únicos, já existíamos de alguma forma, criados por Deus em algum momento, assim como Ele também criou as árvores, planetas, insetos e galáxias. Este pensamento, que a muitos pode soar absurdo, é absolutamente compatível com a ordem geral do universo, onde tudo tem um início e onde tudo evolui gradualmente. Por que seríamos a única exceção? O que justifica tamanha pretensão?

Não sei como foi nem onde está a origem de minha jornada. Talvez há alguns zilhões de anos eu tenha sido uma ameba ou protozoário. Talvez há alguns bilhões de anos eu tenha sido uma planta ou uma árvore. Talvez há alguns milhões de anos eu tenha sido um mamífero ou um anfíbio. Talvez há algumas centenas de milhares de anos eu tenha sido um Homem de Neandertal ou um Homo Erectus. E talvez, há alguns séculos, eu tenha sido um camponês ou um Senhor do Castelo.

Mas, assim como intuo que o princípio inteligente e vital que me individualiza não começou aqui, sinto que ele não termina aqui, e quando este ciclo estiver encerrado outro terá início no momento oportuno, onde seguiremos evoluindo incessantemente, sempre herdeiros de nós mesmos. O que somos hoje é consequência do que fizemos ontem. E o que seremos amanhã estamos forjando agora.  

E neste processo que parece tender ao infinito, sinto que a jornada que tenho pela frente é ainda maior, mais empolgante e me reserva muito mais surpresas, desafios e emoções do que sou capaz de imaginar. Se há zilhões de anos eu posso ter sido uma ameba, por que não imaginar que daqui a outros tantos zilhões eu poderei ser uma individualidade fluídica, dotado de sentidos que ainda sou incapaz de conceber, atravessando o universo com a velocidade do pensamento e fazendo parte de um grupo de trabalho encarregado por Deus de criar novas galáxias? 

Cada vez que olho para o universo e suas estrelas posso imaginar o que ainda está por vir. E sinto que Deus não nos criou para chegarmos apenas até aqui. Sinto que Ele tem grandes planos para todos nós, mas deseja que tudo aconteça no ritmo certo, como tudo mais que Ele faz.

E se a jornada que tenho pela frente ainda vai durar megazilhões de anos ou mesmo durar até o infinito, isto não me aflige. Eu vou apenas seguir em frente, procurando fazer sempre o melhor, e sabendo que tudo tem seu tempo certo. Afinal, para Deus o tempo não existe. E Ele não há de deixar o tempo me faltar.

 

 

Publicado em 09.01.2020