A Caneca do Ibis

 

Naquela manhã eu acordei com o dedo médio inchado, vermelho e com a unha doendo tanto que eu mal aguentava tocar. Decidi ir a uma farmácia e comprar um remédio, afinal, não era nada que uma pomadinha não resolvesse. O problema é que a farmácia ficava em Praga.

Pois é, eu estava na capital da República Tcheca, em viagem de férias. Mas o problema do problema eu só descobri ao chegar na farmácia: Ninguém lá falava inglês, só tcheco.

Como explicar para a atendente do balcão da farmácia o que eu estava sentindo?

É incrível o que fazemos em situações emergenciais, quando ninguém entende nossa língua, para sermos compreendidos. O medo do ridículo desaparece. Decidi assumir o papel de ator de cinema mudo e caprichei na mímica: Mostrei o dedo para a farmacêutica, revirei os olhos e fiz cara de sofrimento e dor, mas acho que valeu, porque após minha atuação ela deu um sorriso, foi para os fundos da farmácia e voltou com uma caixinha na mão e um jeito todo alegre. Me estendeu a caixinha e explicou, falando devagar (como se falando devagar fosse mais fácil para eu entender) o que eu deduzi serem as instruções de uso. E também pegou um copo, enfiou o dedo dentro algumas vezes e depois soprou, como se a água estivesse quente.

Captei a mensagem: Era para eu botar o dedo de molho em água quente e depois aplicar a pomada. Agradeci, paguei e voltei para o hotel.  

De volta ao meu quarto fui procurar um recipiente para encher de água quente e botar o dedo de molho. Claro que não tinha. Hotel Ibis era assim, no quarto só tinha dois copos plásticos, daqueles bem vagabundos, que se a gente apertar eles racham ao meio e se botar água quente eles desmancham. Não ia dar certo.

Decidi então descer até a portaria e tentar arranjar um copo decente. A moça da recepção – que felizmente falava inglês – me trouxe então essa caneca. Foi com ela que fiz  o tratamento durante todos os dias em que fiquei em Praga, até o dia de ir embora do hotel.

O problema é que no dia de ir embora o dedo ainda doía muito, eu ia pegar um trem, onde com certeza só teria copos ainda mais simples e eu não estava a fim de interromper o tratamento.

O que fazer? Devolver a caneca e correr o risco de interromper o tratamento e o dedo inflamar de novo? Ou levar a caneca comigo para não interromper o tratamento?

Preciso mesmo dizer o que fiz? Pois é, a caneca seguiu viagem comigo, acompanhada de um desagradável sentimento de culpa por eu ter furtado um bem do Hotel Ibis Praga, que tão bem tinha me recebido.

De qualquer forma, mesmo com o sentimento de culpa me martelando a consciência, a caneca do Hotel Ibis seguiu viagem de trem, atravessou vários países e no final acabou voltando comigo para o Brasil. Afinal, depois de quase 30 dias de viagem a caneca e eu já tínhamos nos tornado bons amigos e não dava para deixá-la para trás.

E antes que venham dizer que eu sou um afanador de canecas de hotéis, eu esclareço que para agir assim eu tive uma justificativa válida: Foi uma emergência médica. Graças à qual minha coleção de canecas ganhou mais um exemplar.

E eu juro que a inflamação de meu dedo não foi premeditada.

 

 

Publicado em 26.09.2019