A cena é recorrente e já foi mostrada diversas vezes, principalmente em filmes americanos. Num escritório a câmera mostra um grupo de pessoas reunidas, rindo e festejando algo. Numa mesa há um bolo onde em cima se lê Steven qualquer coisa. A câmera dá close num personagem idoso, com bigodes e ligeiramente barrigudo, e concluímos que ele é o Steven do bolo. Alguém começa a falar mais alto e todos ficam quietos. É um discurso de despedida e pelo que é dito, percebemos que é a despedida de Steven. Ele está se aposentando. Depois do discurso todos lhe dão parabéns, alguém faz uma piada de gosto duvidoso e todos riem enquanto Steven faz força para rir também. Então, alguém aparece com um presente, e Steven, tentando conter a emoção, abre o pacote colorido, enquanto todos em volta se calam e ficam esperando sua reação.
Naquele instante de silêncio a câmera mostra Lisa, amiga bem mais nova de Steven, que demonstra estar verdadeiramente triste com sua partida. Pouco atrás está Parker, amigão de tantos anos, que faz força para não chorar. Enquanto isso, os funcionários mais novos, entre mordidas em donuts de chocolate e goles de Dr Pepper seguem com aquele ritual de despedida, tantas vezes já encenado, como se tudo aquilo fosse apenas mais uma inevitável rotina de trabalho.
A câmera fecha então no rosto de Steven e por sua expressão percebemos que alguma coisa não está bem. Agora que o momento chegou, estranhamente, ele não se sente feliz e uma inesperada angústia parece invadir seu peito, mas ele disfarça o quanto pode para os outros não perceberem. Balbucia algumas palavras de agradecimento, enxuga disfarçadamente os olhos com a manga da camisa xadrez, ri das piadas sem graça, e após abraçar novamente um a um, segura a caixa com seus pertences no braço esquerdo, a caixa com o presente no braço direito e segue em direção à porta, enquanto todos lhe dão tapinhas nas costas, fazem piadas sobre as noitadas que ele vai poder ter sem precisar acordar cedo e lembram, entre risos, que será necessário um grande estoque de Viagra.
E ao chegar à porta Steven se vira para dar um último adeus e percebe que ninguém mais está lhe olhando e que a rotina do escritório já foi retomada. As pessoas estão atendendo ligações, digitando e tratando de assuntos diversos. Steven então se vira novamente para a frente, olha para as duas caixas, olha para a rua à sua frente, plena de vida, sons, cores e movimentos e pela primeira vez em vários dias, sorri de satisfação. E atravessa a porta de saída para não voltar mais.
Corta.
Nada disso aconteceu comigo, não saí carregando caixas, não teve bolo, donuts, discursos, piadinhas nem presentes. Driblei este ritual clássico de despedida que poderia, ou não, acontecer comigo, talvez por medo de minhas próprias emoções. Bem que o pessoal tentou, mas eu disfarcei, disse para deixar para depois, saí de férias, emendei com uma licença e quando minha aposentadoria saiu eu já estava longe. Fugi. Pois é, sou um covarde, podem me jogar na cara.
Aposentadorias são daqueles momentos que mexem com a gente e que nunca sabemos como vamos reagir quando a hora chegar. Elas são um dos poucos rituais de vida que tem a capacidade de nos baquear as pernas. São como o primeiro emprego, a formatura, o casamento ou uma mudança de país. Um amigo disse que na fase inicial a gente se sente como se estivesse de férias, mas depois de algum tempo, quando a ficha cai, é importante arranjar o que fazer.
Bem, eu não sei em que fase estou e muito menos se a ficha já caiu (alguém ainda usa fichas?) mas planos é que não faltam. E acho curioso que a pergunta que mais ouço nestes dias é: O que você vai fazer agora? E para isso eu tenho uma resposta pronta: Não sei o que vou fazer, mas sei muito bem o que não vou fazer: Acordar todos os dias às 6:20 da manhã. Me preocupar com meu saldo no banco de horas. Me estressar por causa de empreiteiros reclamando de tudo. Me estressar com diretores mudando prioridades a cada dia. E principalmente, perder horas de sono com problemas que para mim já deixaram de existir. Em compensação, vou ter mais tempo para ler, escrever, ouvir música, viajar, passar mais tempo com a família e fazer o que me der na telha, inclusive trabalhar no que quiser. O problema é que - já deu para perceber - se o tempo antes era curto, agora parece que ficou ainda menor para tudo que desejo fazer, o que só pode estar sendo causado por algum desconhecido fenômeno físico.
Na verdade, até poderia ter ficado mais alguns anos lá, mas acho que a gente deve criar seu próprio tempo, e não ser surpreendido por ele. Aposentadorias - escrevo sem conhecimento de causa já que sou novato no tema - são como formaturas, casamentos ou mudanças de país. A gente nunca tem certeza se vai ser como imaginamos, mas como esse é o caminho, precisamos fazer o melhor possível para dar certo.
Quando mandei fazer esse carimbo, há vários anos, o rapaz da loja me disse: Esse aí vai durar duas mil carimbadas. E eu respondi: Então vai durar até minha aposentadoria, e nós dois rimos. Parecia tão distante.
Publicado em 03.06.2018