Sem Lugar no Mundo

 

Existem pontos em comum entre Anne Frank e Françoise Frenkel. Ambas eram judias, viveram na época da guerra e precisaram se esconder para sobreviver. Mas ao contrário de Anne, que escreveu um diário que todos conhecem, Françoise escreveu um livro que poucas pessoas chegaram a ler. Até agora.

Sem Lugar no Mundo foi escrito em 1945, lançado pela editora Jeheber, de Genebra, passou despercebido e praticamente desapareceu. Permaneceu esquecido por quase sete décadas até que, quase por acaso, foi reencontrado em um bazar de caridade de Nice. Reeditado na França em 2016 (título original Rien où Poser sa Tête), e lançado em diversos países, inclusive no Brasil pela editora Bazar do Tempo, ele é como um baú perdido no fundo do mar que volta à superfície trazendo tesouros e revelações.

Neste livro, Françoise, judia polonesa dona de uma livraria em Berlim, conta como viu sua vida mudar após a chegada do nazismo ao poder, a escalada de ódio, intolerância, as perseguições, o medo, como precisou fugir, se esconder, como foi ajudada por inúmeros amigos, como precisou ir de cidade em cidade, lugar em lugar, esconderijo em esconderijo, desafiando todas as probabilidades e perigos para continuar viva.

É um livro narrado em primeira pessoa, com uma prosa enxuta e agradável, que nos faz sentir como se a autora estivesse sentada com a gente num banco de praça ou em nossa sala de estar, relatando com detalhes sua incrível jornada. Não é um drama, embora em muitos trechos seja emocionante. E mesmo atravessando tempos sombrios, Françoise consegue manter o bom humor e a esperança, presentes em sua narrativa em diversos momentos, o que torna o livro ainda mais fascinante.

Embora pareça ficção, a história narrada no livro é verdadeira e mereceu prefácio de Patrick Modiano, prêmio Nobel de literatura 2014. Quanto à Françoise Frenkel, pouco se sabe sobre ela após a guerra. Sabe-se que conseguiu fugir para a Suíça, onde continuou morando por algum tempo. E que após a guerra mudou-se para a França, onde viveu até 1975. Mas não foram encontrados outros registros ou fotografias dela. É como se a autora, depois de deixar seu depoimento, tivesse resolvido simplesmente sair de cena e começar vida nova, sem deixar rastros.

Sem Lugar no Mundo é um daqueles livros que nos fazem pensar na sordidez das perseguições raciais. Em certos momentos nos faz sentir vergonha de pertencer à espécie humana, enquanto em outros nos faz sentir que nem tudo está perdido, pois mesmo em meio aos piores pesadelos existem pessoas dispostas a arriscar suas vidas para ajudar alguém necessitado.

O ponto em comum mais importante entre as vidas de Anne Frank e Françoise Frenkel é que ambas nos deixaram relatos inspiradores sobre a vida e sobre a importância de nunca deixar de acreditar que melhores dias virão.

Françoise Frenkel, felizmente, conseguiu viver para ver este dia chegar.

 

 

Publicado em 27.10.2018