Parece que Johnny Depp está prestes a se tornar o mais novo membro do clube dos cancelados, aqueles que caem em desgraça, devem ser esquecidos, ter seus nomes apagados dos livros e todas suas obras queimadas. Só que não. Johnny se recusou a enfiar a carapuça, reagiu, disse que a história é outra, que ele é a verdadeira vítima, e que tudo não passa de armação de sua antiga mulher, a atriz Amber Heard. E foi além, abrindo um processo contra os escandalosos tablóides ingleses, acusando-os de calúnia e indo à luta, lavando a roupa suja caseira em público.
Nesse meio tempo a indústria do entretenimento aguarda o desenrolar dos acontecimentos roendo as unhas. Não por compaixão por Johnny ou Amber, mas sim porque os dois estão envolvidos em projetos milionários, filmes com estreias globais previstas para breve e o desenrolar da história tem potencial de trazer prejuízos estratosféricos para os estúdios, seja qual for o veredicto.
O episódio envolvendo o antigo casal de pombinhos é apenas mais um capítulo da Saga Vamos Purificar a Humanidade, que começou com bons propósitos, influenciado pelo #metoo, mas que com o tempo se transformou numa verdadeira caça às bruxas, um movimento hipócrita visando apagar da memória coletiva todos aqueles que um dia fizeram alguma coisa errada. Muito deste movimento é inspirado no falso moralismo que tudo permite por baixo dos panos, desde que todos aceitem continuar fingindo que nada sabem, enquanto muitos que o condenam praticam os mesmos erros.
É inquestionável que quem errou deve pagar por seus crimes conforme prescreve a lei. Seja através de multas, indenizações ou prisão. Mas daí a dizer que esta pessoa deve ser banida, expurgada, impedida de trabalhar e ter suas obras esquecidas é ir longe demais. Quem age assim repete a Rússia de Stalin, quando os que caiam em desgraça no regime tinham suas fotos apagadas dos livros e as menções a seus nomes removidas.
Se olharmos para trás veremos que alguns dos maiores artistas e personalidade que o mundo conheceu não tinham nada de santos em suas vidas privadas:
Muitos filósofos e matemáticos da Grécia antiga eram pedófilos. A pedofilia era considerada normal na época.
Auguste Rodin tinha relações íntimas com suas alunas, as enganava e assumiu indevidamente a autoria de suas obras.
Isaac Newton boicotou e arruinou a carreira de colegas cientistas
Steve Jobs foi um tirano com seus funcionários e prejudicou Steve Wozniak, parceiro fundador da Apple.
Pablo Picasso, quando jovem, foi ladrão e participou do roubo da Mona Lisa, no Museu do Louvre.
Winston Churchill era racista, imperialista e não defendia a equidade entre povos.
Albert Einstein traía sua esposa e a humilhava publicamente.
John Wayne entregou e delatou colegas atores durante o Macarthismo, destruindo suas carreiras.
Henry Ford era anti-semita e simpatizante ferrenho do nazismo.
Todos eles podem ter tido atitudes deploráveis ou expressado pensamentos vergonhosos em algum momento de suas vidas, e quem sentiu as consequências de seus atos sabe disso melhor que ninguém.
Mesmo assim, nem por isso deixamos de estudar trigonometria ou filosofia, comprar carros Ford, usar celulares Apple, apreciar faroestes de John Wayne ou vamos renegar as obras de Picasso e Rodin. Valorizar seus legados e obras não significa necessariamente apreciar incondicionalmente as pessoas que as criaram. E assim deve continuar sendo.
Se antes as pessoas que caiam em desgraça eram linchadas, agora são canceladas. As duas coisas são igualmente erradas e repulsivas.
Publicado em 22.08.2020
N. do A.: Na época da publicação desse livro, Johnny Depp já havia ganhado o processo de difamação contra Amber Heard. O júri decidiu que a atriz precisará pagar indenização de 10 milhões de dólares a Johnny. Por outro lado, Johnny precisará pagar 2 milhões de dólares à Amber.