Poucas coisas são tão capazes de nos fazer viajar no tempo como música e olfato. Quem nunca ouviu uma determinada canção e no mesmo instante foi transportado de volta ao passado e lembrou de tudo daquela época? O que fazia, sentia e o que almoçou naquele dia (bem, quase tudo). E quem também nunca sentiu o cheirinho de um prato conhecido e na mesma hora voltou a algum local para sempre associado àquele aroma?
Não sei vocês, mas isso acontece comigo a toda hora. Quando era pequeno morava com meus pais numa vila militar e lá não tinha nenhuma padaria por perto. O pão era trazido todos os dias numa carroça puxada a cavalo (juro que era assim mesmo), que passava e ia perguntando quem ia querer.
Lembro que eram pães compridos e embalados um a um num papel cinza. Delivery anos 50. Era prático e até romântico, mas o problema é que quando o pão chegava nas casas já tinha percorrido uma longa distância e estava frio. E pior, sem cheiro.
Só depois de adulto fui me dar conta que tinha passado toda minha primeira infância sem sentir o cheirinho de pão quente saído na hora, o que talvez explique parte de meus traumas psicológicos. Somente fui descobrir os prazeres transmitidos pelo aroma de pão recém saído do forno anos mais tarde, passando as férias no Rio com meus pais.
Em Copacabana, onde ficávamos hospedados, existiam dezenas de padarias, praticamente uma em cada esquina, e em algumas delas sempre havia um pão quentinho saindo do forno. E ainda melhor: cheirando. Acho que se no paraíso existe um cheiro com certeza só pode ser o cheiro de pão recém saído do forno. Não existe nada melhor.
Até hoje, sempre que passo em frente a uma padaria e sinto aquele mesmo cheirinho delicioso, eu me transporto aos sete anos e àquela padaria da rua Viveiros de Castro.
Mas isso não acontece apenas com cheiros. Com música a coisa é ainda mais intensa e às vezes tenho a impressão que meus circuitos cerebrais responsáveis pela música andaram trapaceando. Acho que quando eu ainda era um feto eles se apropriaram de trechos do cérebro destinados a outras atividades. Só isso pode explicar porque sou tão retardado para certas coisas (por exemplo, desatar nós em cadarços de sapato e concertar torneiras) e tão ligado em música o tempo todo, mesmo quando não quero.
Uma frase que escutamos a toda hora é ouvir pessoas de mais idade dizendo que 'não se faz mais música como antigamente'. A questão é que 'antigamente' é um termo genérico e depende da quilometragem rodada de cada um.
No meu caso, música e eu temos vivido em simbiose desde que me conheço por gente, sendo que cada momento de minha vida tem sua própria trilha sonora. Mesmo assim, curiosamente, percebi que as que mais me fazem fechar os olhos são as dos anos 70. Seriam elas as melhores músicas de todos os tempos?
A resposta para mim é evidente: Claro que não. Isso não existe. Sempre existiram músicas boas e sempre vão existir. A questão não é a música, somos nós mesmos.
Nos anos 70 eu tinha vinte anos e estava a mil. E quem não curtiu, aproveitou e viveu seus vinte anos? Aos vinte anos temos mil planos, sonhos, inspirações, idéias, somos românticos, sonhadores, altruístas, esclarecidos, capazes, dinâmicos, fortes, jovens, bonitos, saudáveis, somos capazes de tudo, temos uma força e potenciais incríveis. E a música que toca enquanto nos sentimos assim está associada a todas estas sensações Ela é a trilha sonora de tudo que vivemos e pensamos nessa fase da vida.
Portanto se estamos a mil quando temos vinte anos a música que toca quando temos vinte anos também é mil. E para nós sempre será. Ela é a nossa melhor música de todos os tempos. Já para os que vieram antes ou depois de nós, as melhores músicas de todos os tempos serão outras, da época em que cada uma dessas pessoas se sentia melhor.
Continuo ouvindo, curtindo e procurando músicas novas, afinal música é vida e vida se renova.
E felizmente vejo que música boa continua jorrando como água da fonte, sem parar.
Publicado em 06.01.2018