Memórias e Lembranças

 

Aproveitei os dias que passei no sul para dar uma esticada até Canoas, parte da Grande Porto Alegre, onde morei dos 5 aos 9 anos. E foi como se eu tivesse chegado a outro planeta. Nada podia ser reconhecido, como se eu nunca estivesse estado naquele lugar. Canoas, na época, era o que se poderia chamar de antessala do fim do mundo, embora para mim ela fosse o centro de meu universo.

Lembro bem da vila militar onde morava com meus pais, das duas linhas de trem que passavam em frente à nossa casa e de minha mãe preocupada, dizendo para eu nunca chegar nem perto delas.

Lembro do meu fascínio pelos trens de carga e de passageiros que passavam a toda hora, em direção às cidades de Santa Maria e Montenegro, como me explicava meu pai, e lembro também do homem que eu via na locomotiva, bem na frente de todos aqueles trens imensos e imponentes, e como aquelas visões foram determinantes para eu decidir que quando virasse gente grande ia ser maquinista, sem dúvida a melhor profissão do mundo.

Lembro que uma vez, junto com amigos e quase como quem comete um crime, fomos até a linha do primeiro trem e colocamos uma moedinha nos trilhos. Então, quando o trem se aproximou, todos nos abaixamos atrás de uns morretes - senão o maquinista poderia nos ver e, claro, parar o trem e vir reclamar - até ele passar e depois fomos lá e pegamos a moedinha, quente e achatada como um disco de papel.

Lembro das dezenas de nuvens de mosquitos que todos os finais de tarde apareciam voando e que nós achávamos tudo aquilo o máximo, muito divertido.

Lembro também que nosso colégio participava das comemorações juninas, e tínhamos que nos vestir como gaúchos, desfilar pelas ruas centrais de Canoas e depois fazer uma apresentação de danças típicas gaúchas.

Foi pensando nisso tudo que fui procurar algumas fotos da época e encontrei essa, feita não sei por quem, mostrando um desfile de minha turma do 2o ano primário, todos devidamente paramentados como gaúchos (pilchados, como se diz na minha terra).

Comparei essa foto antiga com outra, feita por mim, mais de 50 anos depois. Ambas foram feitas exatamente no mesmo lugar, a avenida principal de Canoas. Em cima vê-se uma rua de terra batida, nenhum veículo circulando, um poste de madeira onde se lê pintado Lott (na época candidato à presidência), trilhos no canto direito, e nas duas laterais da rua há mato, muito mato. E no centro, um grupo de crianças, de seus sete ou oito anos, caminham de mãos dadas, aos pares.

Na imagem de baixo está há uma rua pavimentada, com carros circulando e carros estacionados, um muro separando os trilhos da avenida e árvores floridas ao fundo. E nenhuma pessoa à vista.

Lugares completamente diferentes e ao mesmo tempo o mesmo. Impossível não fazer uma analogia com nós próprios, que embora por fora nos tornemos mais e mais diferentes a cada ano de vida, não raro permanecemos os mesmos por dentro.

Voltar e rever locais onde passamos a infância é uma sensação difícil de descrever. Embora em nossas memórias continuem todos esses lugares gravados em imagens vivas, o que encontramos ao chegar lá pode se revelar de uma vivacidade ainda maior, muitas vezes decepcionante. Novamente aqui há uma semelhança, quando encontramos pessoas há muito não vistas.

Talvez seja por isso que muitas pessoas preferem não mais encontrar antigas paixões: Para preservar o encanto guardado na memória. Assim como nem sempre é bom rever os lugares de infância: Para não quebrar a magia preservada nas lembranças.

 

 

Publicado em 17.09.2018