No livro O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, o personagem título faz um pacto com uma entidade maligna. Graças a isso Dorian deixa de envelhecer e seu rosto e corpo permanecem belos e atraentes para sempre, não importa o que Dorian faça de errado com os outros ou consigo mesmo. Em compensação, todas as maldades, vícios, erros e perversidades cometidas por ele passam a deixar marcas no quadro que o retratava, pendurado na parede. É o quadro que passa a representá-lo como ele era por dentro. Aos poucos e a cada ano que passa, seu retrato torna-se mais e mais distorcido, sinistro e aterrorizante, até chegar ao ponto em que Dorian não suportava mais olhá-lo e decide cobri-lo com um pano e guardá-lo no porão.
Quase todos fomos criados com filtros de comportamento. Nossos pais nos diziam coisas do tipo 'não seja mal-educado', 'dá bom dia', 'tira o dedo do nariz', 'fica quieto'. E ai de quem não agisse assim, pois levava no mínimo um beliscão. E esses ensinamentos transmitidos por nossos pais foram, em maior ou menor grau, incorporados e adotados ao dia a dia como parte de nossas rotinas, seja no trabalho, numa entrevista de emprego, no elevador, na academia de ginástica, no ônibus, com conhecidos etc. No dia a dia usamos filtros sociais.
Mas em nosso mundo privado, longe da vista dos outros, nem sempre é assim. Ficamos frequentemente mal humorados, arrotamos, soltamos pum, dizemos palavras terríveis, mentimos e magoamos os outros, muitas vezes por qualquer bobagem. Longe da vista alheia abolimos os filtros sociais. Isto acontece com todos e de certa forma é normal, pois todos levamos dentro de nós um percentual maior ou menor de O Médico e o Monstro, o famoso conto de terror.
O que temos visto é que nas redes sociais este fenômeno parece ter extrapolado e ido longe demais.
Às vezes, ao ler o que pessoas conhecidas postam em suas redes, quase não os reconhecemos. Não parecem ser aquelas mesmas pessoas amáveis com quem nos damos há tanto tempo. Isto tem levado muitos a abandonar as redes sociais, generalizando e dizendo que elas se transformaram em redutos exclusivos de agressões e rancores. Temos agora o Hatebook e o Detestgram. Estarão as redes sociais agora servindo para expor o nosso lado obscuro? Terão se transformado na versão digital de O Retrato de Dorian Gray?
A questão é que as redes sociais apenas expõem, sem filtros, o que somos e o que pensamos. Não são as redes sociais que estão repletas de raiva e agressões. Somos nós. E por esta razão fugir das redes é como enfiar a cabeça em um buraco, fingindo que o problema deixou de existir. Mal comparando e ainda tomando quadros como exemplo, não é porque existem alguns quadros feios que deixamos de visitar uma importante exposição.
Basta apenas irmos aos lugares certos e escolher o que desejamos ver. Ou então dar um toque naquele amigo querido pedindo para que ele pegue mais leve.
E bloquear os casos perdidos será sempre uma opção.
Publicado em 31.08.2018