Não tenho nada a ver com isso, mas venho acompanhando a novela do Brexit com interesse, e ao contrário do que se pensa, agora é que ela vai começar pra valer.
Já estive no Reino Unido mais de vinte vezes, conheci muitas regiões, quase todas cidades importantes, pude conversar com muita gente e foi interessante ver como idéias e mentalidades variam em função de idade e lugar. A grande maioria dos votantes a favor do Brexit era de pessoas maduras. Britânicos idosos são isolacionistas por natureza e sonham até hoje com a volta dos gloriosos tempos do Império Britânico, onde o sol nunca se punha.
Enquanto isso, a maioria absoluta dos jovens, conectados às novas oportunidades de trabalho, integração e estudo, votaram a favor da permanência na União Européia. Londres, uma cidade moderna e de mentalidade aberta, votou por permanecer na UE enquanto o interior votou para sair. A Escócia, parte integrante do Reino Unido desde 1717 votou por permanecer e não viu com bons olhos o resultado do Brexit. Agora quer fazer um novo referendo para deixar o Reino Unido.
E em meio a isto, diversas empresas e conglomerados financeiros transferem suas sedes para a Europa, visando fugir dos impostos que encarecerão as operações de empresas baseadas no Reino Unido. Trabalhar e morar no Reino Unido vai ficar mais difícil para quem é de fora.
Quem morava, por exemplo, em Lisboa ou Berlim, poderia mudar-se e começar a trabalhar em qualquer cidade do Reino Unido, livre de burocracias, da mesma forma como no Brasil é possível mudar de Maceió para Belo Horizonte. Isso agora acabou. Não havia taxa de roaming telefônico entre Europa e Reino Unido, isto agora acabou. A entrada e saída de produtos provenientes da Europa era liberada, isso agora acabou. Todos eles serão submetidos a rígidas regras de importação e estima-se que produtos perecíveis serão os mais atingidos.
A mão de obra para aqueles serviços que ninguém quer fazer (encanadores, motoristas de táxi, entregadores de pizza, balconistas de mercadinhos etc) vai escassear e encarecer, pois muitos imigrantes precisarão deixar o país. Itens essenciais ao dia a dia, como fornecimento de medicamentos, abastecimento de gás e eletricidade, normas de segurança, partilhamento de informações e leis diversas, precisarão ser renegociados. E a complexa questão da fronteira entre Irlanda e Irlanda do Norte, foco de lutas e batalhas durante décadas e pacificada graças ao acordo de 1998, vai precisar ser revista. E isto é só o início.
A votação que aprovou a saída da União Europeia, em junho de 2016, foi vencida por uma estreita margem, baseada em promessas vagas e inespecíficas, numa decisão tomada muito mais por ideologia e saudosismo do que por lógica de mercado. E formalizado o divórcio em 31 de janeiro último, teve início o doloroso processo de separação de bens, decidindo quem fica com o que. A lista de bens a repartir, tratados a renegociar e acordos a fechar é infindável, como não poderia deixar de ser após um casamento de 47 anos. E tudo precisará estar resolvido até 31 de dezembro de 2020.
Encerradas as festividades geralmente vem a ressaca, e com ela entra em cena a realidade, com suas consequências não previstas ou imaginadas. Algo me diz que daqui a 20 anos os britânicos estarão novamente batendo às portas da Comunidade Européia.
Mas como eu disse antes, não tenho nada a ver com isso.
Publicado em 03.03.2020