Dia 142
Não sei quantos de vocês ainda estão aí nem se esta mensagem será recebida. Desde que as comunicações entraram em colapso venho postando às cegas. De qualquer forma continuo com este diário, ao menos para deixar um registro para as futuras gerações. Se houver. Hoje pela manhã contei as máscaras que me restam: Cinco. E o estoque de álcool gel deve durar mais 15 dias. De minha janela vejo uma torre de comunicações no alto de um prédio, mas ela está cada dia mais adernada e acredito que irá resistir, no máximo, mais uma semana. Depois que ela desabar perderei meu último elo de contato com o resto do mundo. O suprimento de água e alimentos está quase esgotado. Diminuí a porção diária de calorias ao mínimo necessário à minha subsistência e tenho passado a maior parte do tempo deitado e evitando me mexer, de forma a preservar ao máximo as energias que ainda me restam. Se conseguir manter este racionamento, estimo que as provisões existentes poderão garantir minha subsistência por mais um mês. Desde que o confinamento global foi decretado e os pelotões de controle passaram a patrulhar as ruas as saídas tornaram-se extremamente perigosas. Meu fornecedor de alimentos do mercado negro deixou de aparecer há duas semanas, imagino que tenha sido descoberto e executado. Agora, quando preciso de víveres, tenho que me virar sozinho, sempre à noite, me esgueirando pelas sombras. Mesmo assim é preciso tomar cuidado, pois apenas nesta semana quatro pessoas deste quarteirão foram fuziladas pelos pelotões porque foram pegas fora de casa. O cachorro do 702, que não parava de latir, está mudo há três dias, imagino que já tenha morrido de fome. A água armazenada na banheira e na máquina de lavar acabou e agora só me restam oito panelas cheias. Na noite passada tive o sonho mais maravilhoso de minha vida: Sonhei que estava tomando um banho quente de chuveiro. Os veículos armados do GBESES (Gabinete do Bem Estar Social e Execuções Sumárias) seguem patrulhando as ruas diversas vezes por dia, e daqui consigo ouvir suas mensagens gravadas, informando que não precisamos nos preocupar, que tudo está bem e sob controle, que devemos manter a calma e que a vacina está quase pronta. Tento me animar quando ouço isto, mas quando lembro que esta mensagem é a mesma desde o dia 52 bate uma certa angústia. As mensagens dizem também que em breve os supermercados, farmácias e hospitais irão reabrir, mas que por enquanto devemos todos permanecer em casa, longe das janelas, com os vidros fechados e sem procurar ninguém. Só não entendo por que insistem em dizer que as luzes devem permanecer apagadas, pois a eletricidade acabou em todos os lugares há mais de dois meses. Mas o pior de tudo é o silêncio, total e absoluto, a qualquer hora do dia ou da noite. Nessas horas eu morro de saudades da minha vizinha do andar de cima, que tinha mania de empurrar móveis sobre minha cabeça durante as madrugadas. Bons tempos. Nesta noite precisarei sair. Vou tentar chegar ao prédio do antigo supermercado e encontrar algumas sobras de pão e enlatados. A patrulha noturna faz uma ronda em minha rua a cada 45 minutos, portanto terei pouco mais de meia hora para ir, transpor as barreiras, atravessar o arame farpado, tentar encontrar alguma coisa e voltar. Que os Céus me ajudem.
Douglas desligando.
Publicado em 13.03.2020