Uma das desvantagens da pandemia é que ela acabou com a desculpa mais antiga da humanidade. Aquilo que todos nós estávamos acostumados a dizer quando não queríamos fazer alguma coisa. Quando a gente não queria responder a um amigo, ou não queria arrumar o quarto, ou não queria fazer a limpeza nas gavetas ou não queria botar em dia o balancete do condomínio. Em todas essas ocasiões a gente sempre dizia: Eu estou sem tempo.
É claro que nós sabíamos que aquilo era mentira, e a outra parte envolvida (no caso de uma pessoa) também. Mas havia um acordo tácito entre as duas partes, um acordo não assinado mas válido, legalizado e reciprocamente aceito, em que as duas partes envolvidas fingiam acreditar que aquilo era verdade.
Agora isso acabou. Ninguém mais pode dizer que está sem tempo. Com metade do planeta Terra encarcerado em casa, excetuando-se os profissionais de saúde (estes sim, estão sem tempo para nada), tempo é o que não falta ao resto da humanidade. Nosso problema agora é o que fazer com ele.
Há casos de pessoas que descobriram quantos grãos de feijão cabem num pote de vidro, outras estão tentando colocar em dias a leitura das dezenas de livros empilhados há meses, outras passam os dias tentando decidir o que assistir na Netflix e outras dedicam-se a pesquisar quantas barras de chocolate uma pessoa é capaz de engolir durante um dia. Existe até mesmo quem trabalhe normalmente, online. O fato é que o planeta inteiro descobriu, de uma hora para outra, que tempo é o que não nos falta.
Mas há um lado bom nessa inesperada avalanche de tempo que sufocou a humanidade. Ela serviu para desmascarar as pessoas que nunca retornam nossas mensagens. Agora acabou-se aquela antiga desculpa esfarrapada do 'eu estou sem tempo'.
Daqui pra frente elas vão ter que arranjar uma nova desculpa.
Publicado em 23.03.2020