Armas

 

Detesto armas. Nunca dei um tiro, nunca possuí uma arma, não entendo nada de armas e se depender de mim, pretendo manter as coisas assim até o fim da vida.

Considerando que meu pai era militar e especialista em armamentos, isto surpreende até a mim mesmo. Quando eu era pequeno meu pai às vezes trazia para casa 'sobras de trabalho' e por isso me acostumei desde cedo com caixas vazias de munição (ótimas para guardar documentos), cápsulas de projéteis detonados (eu chamava de chumbinhos e brincava com elas como se fossem soldadinhos), granadas vazias (excelentes pesos de papel) e coisas do gênero.

Tendo nascido e morado até os 9 anos no Rio Grande do Sul, estado que concentra metade das indústrias bélicas brasileiras e também o estado de mais forte cultura armamentista do país, onde o tradicionalismo prega que todo gaúcho que se preze deve saber andar a cavalo, cevar mate e usar um 38 na cintura, eu tinha tudo para ver armas e seus acessórios como objetos normais, úteis e imprescindíveis no dia a dia, mais ou menos como chinelos de dedo ou canetas esferográficas. Mas não adianta, armas não descem pela minha garganta.

Definitivamente, alguma coisa deve ter dado muito errado em minha criação.

Estou falando isso a propósito do mais recente episódio americano de assassinato coletivo, ocorrido em Las Vegas. Talvez nem dê para afirmar que é o mais recente, pois neste exato momento, outro já pode ter acontecido em qualquer outra cidade americana. E se ainda não aconteceu vai acontecer semana que vem, ou mês que vem. Todos nós sabemos disso.

A população americana é 4,4% da população mundial, mas concentra 42% das armas legais nas mãos de civis. A taxa de homicídios nos Estados Unidos é 25 vezes maior que a taxa média de homicídios em outros países desenvolvidos. Mais americanos são mortos a cada ano em homicídios, do que em guerras e ataques terroristas somados. E em nenhum outro país do mundo é tão fácil comprar armas. Apenas coincidência?

Enquanto isso, no Brasil enfrentamos um tipo de criminalidade diferente. Não temos homicídios cinematográficos como os que ocorrem nos Estados Unidos. Temos homicídios discretos, diários e sistemáticos. Aqui enfrentamos praticamente uma guerra civil, sendo que o índice de mortes com armas de fogo em nosso país é vinte vezes maior que o americano, de acordo com dados do Small Arms Survey. E na busca desesperada por uma solução, muitos de nós defendem a compra e livre porte de armas.

No entanto, de acordo com dados de organizações internacionais que fazem o acompanhamento da relação número de armas/países/homicídios, está comprovado que quanto maior o número de armas em mãos de civis, maior é sempre o número de homicídios. Ou seja, acreditar que a compra e livre porte de armas trará a solução é um engano monumental.

Mas em 2005 o referendo feito no Brasil tentando proibir o comércio de armas de fogo e munição foi rejeitado por 64% da população. E ainda hoje muita gente não quer nem ouvir falar em controle de armas.

Definitivamente, alguma coisa deve ter dado muito errado em nossa criação.

 

 

Publicado em 10.10.2017