Lembro como se fosse ontem: Levei o álbum pra casa, sentei no chão em frente à vitrola da minha avó, abri a portinhola de madeira, puxei a bandeja do toca disco para fora, e com todo o cuidado do mundo, botei o Long Play (assim eles eram chamados) no prato redondo, fechei a porta do quarto para não incomodar os outros, levantei com cuidado o braço da agulha, e com atenção para não arranhar o LP, coloquei-a no início da primeira faixa. E aquela vitrola, que em outras épocas tinha reproduzido tantos tangos, boleros, sambas e marchinhas, pela primeira vez na vida tocou rock. E tocou Beatles.
E eu, sentado no chão com pernas cruzadas, em frente à vitrola, olhos fechados e abstraído do lugar onde estava, me transportava para outra dimensão, enquanto ouvia pela primeira vez em minha vida um disco dos Beatles.
Lembro da sensação que aquela música causou em mim, mas sei que nunca vou conseguir explicar ou sequer dar uma ideia do que senti. Era como se aquela música já estivesse dentro de mim desde que nasci, embora eu nunca a tivesse ouvido. E aqueles arranjos, sonoridades, ritmos e vozes eram tão mágicos, fascinantes e diferentes de tudo que existia, que quase não dava para acreditar que eram reais. Aquela música me representava.
E quando o lado A acabou eu virei e continuei direto ouvindo o lado B. E quando o lado B acabou eu virei e ouvi de novo o lado A. E quando o lado A acabou eu virei e ouvi de novo o lado B. E quando o lado B acabou eu virei e ouvi de novo o lado A. Sim, eu ouvi quatro vezes o disco sem parar, e só não continuei ouvindo mais vezes, noite adentro, porque meus parentes, que já deviam estar à beira da loucura com tantas repetições, devem ter me tirado do quarto à força, alegando que já era hora de eu ir dormir ou jantar ou qualquer outra coisa que me fizesse parar com aquela tortura.
Revolver, lançado em agosto de 1966, não foi apenas o primeiro álbum que eu comprei dos Beatles, foi também o primeiro álbum que comprei na vida. E foi uma primeira vez inesquecível, como são todas as primeiras vezes.
Certas sensações, como a que a música dos Beatles causava a tanta gente, inclusive a mim, parecem ser mais intensas em jovens. Dizem alguns estudiosos, que a causa seria porque a mente jovem é mais suscetível a certas emoções. Isso talvez explique o fenômeno social que na época foi definido como Beatlemania, quando milhões de jovens, em vários países, seriam capazes de tudo para ver seus ídolos ao vivo, e multidões em êxtase, tumultos e desmaios se tornaram frequentes por onde eles passavam. Dizem também que os Beatles fizeram tanto sucesso porque eram as pessoas certas, no momento certo no lugar certo. Mas talvez todas essas teorias não passem de especulações sem sentido. Afinal, quem de nós conhece a fundo o verdadeiro poder da música?
Mas uma coisa eu admito: Apesar de em todos estes anos ter vivido muitas paixões musicais, e continuar fascinado por música, curtindo e procurando novidades, aquela sensação de 'não conseguir explicar o que estou sentindo ao ouvir uma música' foi ficando cada vez mais difícil de ser encontrada, e hoje em dia é quase impossível de achar.
Não sei se a razão seria porque eles foram tão criativos que quase nada do que veio após foi capaz de causar em mim o mesmo impacto, ou se é porque tanta coisa hoje em dia nos causa impacto que acabei me tornando impermeável à música que se ouve por aí.
Ou quem sabe, e isso é mais provável, a razão é simplesmente porque aquela foi a primeira vez. E a primeira vez só acontece uma vez.
Publicado em 24.03.2018
N. do A.: Revolver é o sétimo álbum dos Beatles e atingiu o primeiro lugar nas paradas de sucesso americana, inglesa e de vários países. Está listado como um dos 200 álbuns definitivos no Rock and Roll Hall of Fame, entidade que relaciona os melhores álbuns já produzidos por artistas ou bandas da história da música.