Propagandas Mentirosas

 

Propagandas mentirosas estão em toda parte, desde medicamentos aos eletrodomésticos, desde pacotes de viagens até ofertas de trabalho no exterior, e os exemplos são vários. Mas uma delas me chamou atenção nos últimos dias. Ela não é perigosa nem comete um delito, mas pelo texto que a acompanha não deixa dúvidas: Ela é muuuuito mentirosa!

Publicada quase todos os dias nos jornais, essa propaganda anuncia um toca discos básico, afirmando que ele traz "as emoções dos bons tempos com o charme de ouvir discos de vinil" e completando com "só quem já ouviu um disco de vinil sabe como é prazeroso". 

Não sei quem redigiu esse anúncio, mas com certeza essa pessoa exagerou. Para dizer o mínimo.

Minhas charmosas e prazerosas lembranças dos discos de vinil são um pesadelo. Para começar todo toca-disco precisava de uma agulha (a pecinha que percorria o sulco do vinil). Agulhas quebravam, e para conseguir novas era um problema, só eram encontradas em casas especializadas e quase sempre de qualidade inferior, que comprometiam a qualidade do som. As melhores, importadas, eram difíceis de encontrar, além de caras. As agulhas, por sua vez, eram encaixadas em cápsulas, que também precisavam ser substituídas de tempos em tempos. A cápsula ficava presa no braço da vitrola, que às vezes emperrava.

A velocidade de rotação do 'prato da vitrola' (superfície circular onde eram apoiados os discos), que deveria ser de 33 rotações por minuto, quase nunca era estável, oscilava, e ouvidos mais atentos podiam perceber que a voz do cantor ficava estranhamente mais aguda ou grave, conforme a rotação aumentasse ou diminuísse.

As faixas (músicas) dos discos eram prensadas no vinil de forma concêntrica, com um pequeno intervalo entre uma e outra, e se a gente quisesse, por exemplo, ouvir a 4ª ou 5ª faixa, precisava se aproximar da vitrola (vitrolas não tinham controle remoto), pegar o braço da agulha e, com todo cuidado, posicioná-lo no estreito intervalo entre uma faixa e outra (tinha que ter boa pontaria). E se quisesse ouvir a mesma música de novo, tinha que repetir o processo manualmente (replays não haviam sido inventados). 

Quando acabavam as músicas de um lado a gente tinha que virar o disco (sim, discos tinham dois lado) e isso devia ser feito manualmente e com cuidado, elevando verticalmente o LP através do pino (sim, havia um pino), que ficava no centro do prato e depois recolocar a agulha no início do disco.

Alguns toca-discos eram chamados 'automáticos' porque tinham um sistema que fazia o braço da agulha se elevar e se posicionar automaticamente no início da primeira faixa, o que era considerado um assombro de tecnologia. Mas o problema era que esse sistema não tinha boa pontaria e às vezes o braço ia parar no meio da primeira música, ou na segunda, fazendo com que a gente precisasse ir até lá e reposicionar o braço no lugar certo.

Mas o pior era a qualidade do som. Discos de vinil tinham chiados, estalos, placs, plecs, straks e todo tipo de ruídos que não tinham nada a ver com a música. E como se não bastasse tinham também o hissss , como é conhecido o ruído resultante do contato da própria agulha com o vinil, que nunca cessava e podia ser ouvido sempre que nível da gravação era mais baixo.

Mas o pior do pior eram os arranhões. Colocar a agulha do toca discos no início do vinil era mais ou menos como manusear equipamentos radioativos. Qualquer deslize ou tremor da mão, por menor que fosse, e a tragédia estava consumada. Um disco arranhado significava que aquela música nunca mais poderia ser ouvida como era.

E num requinte de sadismo, o drama do arranhão às vezes se transformava em tragicomédia, quando a agulha travava e alguns trechos da música ficavam sendo repetidos eternamente -  sendo repetidos eternamente -  sendo repetidos eternamente - sendo repetidos eternamente... Nestes casos o melhor a fazer era jogar o vinil no lixo. 

Então fala sério: anunciar "as emoções dos bons tempos com o charme de ouvir discos de vinil" ? Só quem nunca manuseou um vinil pode acreditar nisso.

Viva o CD. Viva o mp3. Viva o Spotify! E viva o Youtube Music!!

 

 

Publicado em 30.01.2020