Li outro dia que diversos cientistas e pesquisadores recusaram as medalhas oferecidas pelo governo Bolsonaro. Com isso ganharam meu aplauso e profundo respeito. Aceitar homenagens de certas pessoas é tudo que não deve ser feito por quem tem vergonha na cara.
Por outro lado, existem diversas pessoas que merecem medalhas e nunca foram lembradas. Uma delas, para mim, é Ziraldo, pelo conjunto da obra. Todos nós conhecemos seu nome, traço e obra, e sua arte tem sido presença constante em todos os lugares desde sempre, a tal ponto que às vezes a gente nem repara nela, como quem passa diariamente em frente ao Pão de Açúcar sem perceber que ali está um verdadeiro ícone nacional.
Minhas primeiras lembranças de Ziraldo incluem os posters que ele fazia todos os anos para a Feira da Providência, que nos anos 60 do século passado, acontecia anualmente às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro.
Lembro de seus cartazes para os filmes nacionais, de seus desenhos e charges políticas no histórico O Pasquim (junto de Jaguar, Tarso de Castro, Sérgio Cabral, Millôr Fernandes e outros), quando eram denunciados com inteligência e humor sarcástico os abusos da ditadura militar. E lembro do Menino Maluquinho, seu maior sucesso, com repercussão internacional.
Mas para mim a principal lembrança de Ziraldo estará para sempre associado à minha infância, e às histórias em quadrinho do Pererê.
Tudo começou quando, no início dos anos 60, Ziraldo teve a ideia de publicar uma história em quadrinhos colorida e mensal, com temática, personagens e situações totalmente brasileiras. Nada nunca tão ousado havia sido feito aqui. Ao contrário das histórias em quadrinhos americanas, que contam com desenhistas, coloristas e principalmente fartos recursos financeiros, Ziraldo estava sozinho em seu sonho, e precisava correr por conta própria atrás de cada detalhe. Mas encarou. E deu certo.
O personagem principal foi batizado de Pererê (nosso Saci, uma referência nacional), e os outros personagens eram o índio Tininim, a onça pintada Galileu, o tatu-bola Pedro Vieira, o coelho Geraldinho, o macaco Alan e o jabuti Moacir. Tinha também a pretinha Boneca de Pixe, namorada do Saci, e a indiazinha Tuiuiú, namorada do Tininim. E as histórias se passavam na fictícia Mata do Fundão. Lembro que todos os meses, meus pais me traziam a revistinha do Saci, e que eu jogava tudo para o alto para ler as aventuras daquela turminha que eu tanto amava. Pererê e sua turma se transformaram em meus melhores amigos de infância e eu vibrava com cada historinha, cada página e cada desenho.
Mas na época eu não tinha a menor idéia do que significava aquela palavra estranha que vinha escrita na capa, ao lado do título da revista: Ziraldo.
A publicação Pererê durou de 1960 a 1964, teve 43 edições com tiragem média de 120 mil exemplares, um verdadeiro fenômeno, e alguns exemplares sobreviveram comigo à passagem do tempo.
Em 2006 foi lançada uma reedição especial com tiragem limitada, composta de uma caixa com histórias selecionadas, e uma fac-símile do primeiro número, lançado em outubro de 1960, do qual eu tive a sorte de conseguir uma cópia.
A revista Pererê continua existindo na memória de muita gente que viveu naquela época inocente e repleta de sonhos. E até hoje eu espero a chance de encontrar pessoalmente Ziraldo, não para lhe conceder a merecida medalha, mas apenas para lhe dizer: Muito obrigado por tudo. Mesmo que ele não entenda nada.
Publicado em 12.11.2021